sábado, 4 de julho de 2020

DESVENTURAS EM SÉRIE

   1 - Mau Começo

Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando, porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. E isso porque momentos felizes não são o que mais encontramos na vida dos três jovens Baudelaire1 cuja história está aqui contada. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes, encantadoras e desembaraçadas, com feições bonitas, mas com uma falta de sorte fora do comum, que atraía toda espécie de infortúnio, sofrimento e desespero: Lamento ter que dizer isso a vocês, mas o enredo é assim, fazer o quê?







   2 - A Sala dos Répteis

O trecho da estrada que sai da cidade, passa pelo Porto Enevoado e vai até a aldeia vizinha de Tédia, talvez seja o mais desagradável do mundo. É chamado de Mau Caminho. O Mau Caminho atravessa campos de um cinzento doentio, em que um punhado de árvores esqueléticas produz maçãs tão ácidas que só de olhar para elas já nos sentimos doentes. O Mau Caminho cruza o rio da Amargura, massa d'água que tem noventa por cento
de lama e uma população de peixes esquálidos, apodrecendo por falta de oxigênio, e que ainda por cima circunda uma fábrica de raiz-forte, de modo que toda a área tem um cheiro ardido e avassalador.








   3 - O Lago das Sanguessugas

Se vocês não soubessem grande coisa sobre os órfãos Baudelaire e os vissem sentados sobre suas malas no Cais de Dâmocles, poderiam pensar que eles estavam a ponto de iniciar uma emocionante aventura. Afinal, os três haviam acabado de saltar da barca que os conduzira através do Lago Lacrimoso para irem morar com sua tia Josephine, e, na maioria dos casos, uma situação como essa levaria a acontecimentos dos mais divertidos.
Mas, é claro, vocês estariam redondamente enganados. 











   4 - Serraria Baixo-Astral

Em algum momento da vida — na verdade, muito cedo — um livro pode lhes cair nas mãos e vocês hão de notar que a primeira frase pode revelar o tipo de história que será lida. Por exemplo, um livro que comece com “Era uma vez uma família de esquilos espertos que viviam dentro de uma árvore” provavelmente conta uma história repleta de animais falantes que se envolvem em toda a sorte de travessuras. Um livro que comece com “Emily sentou-se e olhou para a pilha de panquecas que sua mãe lhe havia preparado, mas ela estava tão ansiosa com o acampamento das bandeirantes que não tinha sequer vontade de comer” provavelmente conta uma história repleta de garotas que riem à toa e se divertem sem parar. E um livro que comece com “Gary estava embevecido por sua luva de beisebol, de couro, novinha, e esperava com impaciência por seu melhor amigo, Larry, que estava para chegar” provavelmente conta uma história repleta de garotos suados que conquistam algum tipo de troféu. E se vocês gostam de travessuras, ou de diversão, ou de troféus, já sabem que livro escolher e podem simplesmente deixar de lado os que não lhes interessam. 

   5 - Inferno no Colégio Interno

Se vocês tivessem que dar uma medalha de ouro para a pessoa mais detestável do mundo, certamente o prêmio iria para Carmelita Spats, e, se vocês não lhe dessem a medalha, Carmelita Spats era o tipo de pessoa que a tomaria de qualquer maneira. Ela era rude, violenta e nojenta, e é uma lástima que eu tenha de descrevê-la para vocês, porque esta história já tem atrocidades e infortúnios demais para eu ainda mencionar uma pessoa tão desagradável.
São os órfãos Baudelaire, graças a Deus, os heróis desta história, não a detestável Carmelita Spats, e se vocês quisessem poderiam dar uma medalha de ouro a Violet, Klaus e Sunny Baudelaire por terem sobrevivido a tanta adversidade. Adversidade é uma palavra que aqui significa “problemas”, “maus momentos”, e pouquíssimas pessoas neste mundo passaram por adversidades tão perturbadoras como essas crianças, que são perseguidas aonde quer que vão. Seus problemas começaram um belo dia em que estavam descansando na praia e receberam a notícia desoladora de que os pais haviam morrido num terrível incêndio. Órfãos, foram morar com um parente distante chamado conde Olaf.

   6 - O Elevador Ersatz

O livro que você está segurando nas duas mãos neste momento — presumindo que esteja, de fato, segurando este livro, e que você só tem duas mãos — é um dos dois livros no mundo que mostram a diferença entre a palavra “nervoso” e a palavra “ansioso”. O outro livro, é claro, é o dicionário, e eu, se fosse você, preferiria ler o outro. Como este livro, o dicionário mostra que a palavra “nervoso” significa “preocupado com alguma coisa” — você poderia ficar nervoso, por exemplo, se lhe servissem sorvete de ameixa seca de sobremesa, porque ficaria preocupado com a possibilidade de o gosto ser horrível — ao passo que a palavra “ansioso” significa “atormentado por um suspense perturbador”, que é como você poderia se sentir se lhe servissem um jacaré vivo de sobremesa, pois seria atormentado pelo silêncio perturbador contido na dúvida sobre se você vai comer a sobremesa ou se é a sobremesa que vai comer você.




   7 - A Cidade Sinistra dos Corvos

Não importa quem você seja, não importa onde você more, e não importa quantas pessoas o estejam perseguindo, o que você não lê é muitas vezes tão importante quanto o que você realmente lê. Por exemplo, se você está caminhando nas montanhas e não lê a placa que diz “Cuidado com o Despenhadeiro” porque está ocupado lendo, em vez disso, um livro de piadas, pode de repente se dar conta de que está caminhando no ar em vez de andar sobre uma sólida base rochosa. Se você está assando uma torta para os seus amigos e lê um artigo intitulado “Como construir uma cadeira” no lugar do livro de receitas, a sua torta provavelmente acabará ficando com gosto de madeira e pregos em vez de crosta crocante e recheio de frutas. E se você insistir em ler este livro em vez de ler alguma coisa mais alegre, muito certamente ficará gemendo de desespero em vez de se contorcer de prazer e, portanto, se tiver um pingo de juízo, porá de lado este livro e irá
pegar um outro. 



   8 - O Hospital Hostil

Existem duas razões por que um escritor terminaria uma frase com a palavra “ponto” escrita toda em letras maiúsculas PONTO. A primeira é no caso de o escritor estar redigindo um telegrama, que é uma mensagem em código enviada por um fio elétrico PONTO. Em um telegrama, a palavra “ponto”, toda em letras maiúsculas, é o código para indicar o final de uma frase PONTO. Mas existe uma outra razão por que um escritor terminaria uma sentença com a palavra “ponto” escrita inteiramente em letras
maiúsculas, que é advertir os leitores de que o livro que estão lendo é tão absolutamente desgraçado que, se eles já começaram a ler, a melhor coisa a fazer seria parar PONTO. Este livro em particular, por exemplo, descreve um período especialmente infeliz nas vidas aflitivas de Violet, Klaus e Sunny Baudelaire, e se você tiver um pingo de juízo que seja, irá fechar este livro imediatamente, arrastá-lo para uma elevada montanha e atirá-lo do alto do cume PONTO. Não existe razão na Terra para você ler nem mais uma palavra sobre o infortúnio, a traição e o desgosto que estão reservados para as três crianças Baudelaire, do mesmo modo como não existe razão para você sair correndo para a rua e se jogar embaixo de um ônibus.

   9 - O Espetáculo Carnívoro

Sempre que termina mais um dia de trabalho, e já fechei o caderno, escondi a caneta e providenciei buracos na minha canoa alugada para que ninguém possa encontrá-la, gosto de passar a noite conversando com alguns poucos amigos que sobreviveram. Às vezes falamos de literatura. Às vezes falamos das pessoas que tentam nos destruir e das chances que temos de escapar. E às vezes falamos das feras assustadoras e inconvenientes que podem estar por perto, e esse assunto leva sempre a desacordos sobre qual parte de uma fera assustadora e inconveniente é a mais assustadora e inconveniente. 
Alguns dizem que são os dentes, porque são usados para comer crianças, algumas vezes os pais delas também, e roer seus ossos. Alguns dizem que são as garras, porque é com elas que a fera rasga as coisas em pedacinhos. E alguns dizem que são os pêlos, pois os pêlos fazem as pessoas alérgicas espirrarem.




   10 - O Escorregador de Gelo

Um conhecido meu escreveu um poema chamado “O caminho menos percorrido”, que descreve uma viagem através dos bosques por um caminho praticamente desconhecido da maioria dos viajantes. O poeta descobriu que o caminho menos percorrido era tranqüilo porém solitário, e deve ter ficado um pouco nervoso durante a viagem, pois se alguma coisa lhe acontecesse os viajantes do caminho mais percorrido não ouviriam seu grito de socorro.
Esse poeta acabou morrendo, como era de esperar. Assim como ele, este livro viaja pelo caminho menos percorrido, porque começa com as três crianças Baudelaire atravessando as Montanhas de Mão-Morta, que não são lá um destino muito popular entre os viajantes, e termina nas águas agitadas do Arroio Enamorado, um lugar de onde poucos se aproximam. Ao contrário da maioria dos livros que a maioria das pessoas prefere, que oferecem narrativas divertidas de pessoas encantadoras e animais falantes, esta narrativa é aflitiva e enervante.


   11 - A Gruta Gorgônea

Depois de passar um bocado de tempo examinando oceanos, investigando tempestades e perscrutando severamente diversos bebedouros, os cientistas do mundo desenvolveram uma teoria a respeito de como a água é distribuída pelo nosso planeta, a qual chamaram “ciclo das águas”. O ciclo das águas consiste em três fenômenos-chave: evaporação, precipitação e acumulação — todos igualmente maçantes.
É claro que ler sobre coisas maçantes é maçante, mas é melhor ler algo que faz você bocejar de tédio do que uma coisa que o fará chorar descontroladamente, dar murros no chão e deixar manchas de lágrimas espalhadas na fronha, nos lençóis e na sua coleção de bumerangues. Assim como o ciclo das águas, a história das crianças Baudelaire consiste em três fenômenos-chave, mas seria melhor se, em vez de ler esta lastimável história, você lesse alguma coisa sobre o ciclo das águas mesmo.




   12 - O Penúltimo Perigo

Já disseram que o mundo é uma lagoa calma, e que toda vez que alguém faz uma coisa, por mais ínfima que seja, é como se uma pedra caísse nessa lagoa e espalhasse círculos de ondulações cada vez mais distantes, até que o mundo inteiro ficasse alterado por uma minúscula ação. Se isso for verdade, então o livro que você está lendo agora poderia perfeitamente cair numa lagoa. As ondulações se espalhariam pela superfície da lagoa e o mundo 
mudaria para melhor, com uma história assustadora a menos para as pessoas lerem, e um segredo escondido a mais no fundo das águas, onde a maioria das pessoas jamais pensaria em procurar. A narrativa desventurada dos órfãos Baudelaire estaria segura nas profundezas das águas tenebrosas, e você seria mais feliz por não ler a história assustadora que escrevi, e em vez disso poderia olhar para a espuma ondulante que se ergue até o topo do mundo.





   13 - O Fim

Se alguma vez você já descascou uma cebola, sabe que a primeira camada, fina e papirácea, revela outra, e mais outra, e antes que você perceba terá centenas de camadas espalhadas pela mesa da cozinha, e milhares de lágrimas nos olhos, e lamentará ter começado a descascá-la e desejará ter largado a cebola para murchar na prateleira da copa enquanto você prosseguia com a sua vida, mesmo que isso significasse nunca mais desfrutar o sabor difícil e avassalador dessa hortaliça estranha e pungente.

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